Notas do subsolo foi o primeiro livro de Fiódor Dostoiévski que eu li. Depois dessa experiência espetacular, só posso dizer que estou muito interessada na leitura de outras outras obras desse mesmo autor.
Também conhecido como Memórias do Subsolo ou ainda Notas do Subterrâneo, essa novela foi lançada em 1864 e é considerada a obra precursora do existencialismo.
O livro é curto, tem cerca de 120 páginas, e é dividido em duas partes.
Na primeira parte, intitulada como O subsolo, o personagem principal, cujo nome não é revelado, discute sobre política e sociedade, criticando essa utopia em torno da bondade humana, e se opondo a muitas ideias que se espalharam na Rússia do Século XIX e na Europa ocidental naquela época.
Na segunda parte do livro, chamada de A propósito da neve úmida, esse anti-herói, como ele mesmo se denomina, narra três episódios da sua vida.
Na versão traduzida dessa obra que eu li, a tradutora Maria Aparecida Botelho Pereira Soares destacou, antes de se iniciar essa história, um comentário que o próprio Dostoiévski teria feito com o irmão sobre esse livro:
"Dei início à novela (...). É bem mais difícil de escrever do que eu pensava. Contudo é absolutamente necessário que ela saia boa, eu preciso pessoalmente disso. Pelo seu tom ela é demasiadamente estranha, e o tom é ríspido e hostil: pode ser que não agrade; consequentemente, é necessário que a poesia suavize e suporte tudo."
Me parece que nesse trecho o autor demonstra sua preocupação com a qualidade do livro que estava produzindo, que de fato sua mensagem fosse entendida pelo leitor, e que a forma como o livro foi escrito deveria sustentar essa mensagem. Na minha humilde opinião ele conseguiu alcançar seu objetivo.
Para que você entenda um pouco mais dessa obra, resolvi dividir essa explicação em duas partes, acompanhando a estrutura do livro.
Primeira parte: O subsolo
Nessa parte, além das inúmeras críticas, você também começa a conhecer um pouco das características desse personagem desconhecido, já que ele apresenta a sociedade na qual ele vive e que vamos entender apenas na melhor na segunda parte do livro.
Já adianto também que essa é a parte mais densa e, por isso, exige uma leitura mais lenta, uma vez que não é apresentada uma história, mas a visão de mundo do personagem.
Sabemos que se trata de um funcionário público e que o mesmo tem 40 anos de idades, dos quais passou 20 afundado na própria raiva.
E o título desse texto é O homem doente, porque é exatamente assim que esse personagem contraditório se apresenta. As primeiras frases do livro são essas:
"Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. (...) se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais."
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Não sou mal nem bom
Na verdade você percebe que ao longo de todo o livro, o personagem se mostra uma pessoa raivosa, ressentida, com uma baixa auto-estima, e sem muita vontade de mudar esse quadro.
E você percebe ainda que uma das coisas que o deixa tão nervoso é esse fato de que ele não consegue se tornar uma pessoa melhor ou pior do que já é. E, para ele, esse meio termo é o que causa boa parte da sua angústia.
"Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado."
O ser humano como ele é
Em vários trechos do livro também é possível perceber críticas a essas correntes de pensamento que pregam que o homem é capaz de mudar e se tornar alguém melhor apenas para atender os anseios da ciência e do meio social, como se não fosse um ser imperfeito e dotado de vontades próprias.
"Digam-me quem primeiro declarou, quem primeiro proclamou que o homem só age mal porque não conhece seus verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instrução, se lhe abrissem os olhos para os seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo sórdido, imediatamente se tornaria bom e nobre, porque sendo esclarecido e entendendo suas vantagens reais, veria justamente no bem a sua própria vantagem? E que, como é sabido que nenhum homem é capaz de agir conscientemente contra seus próprios interesses, consequentemente, por necessidade, digamos, ele passaria a fazer o bem? Ó criancinha pura e inocente!"
"Sabe-se que muitos desses amantes do gênero humano, uns mais cedo, outros mais tarde, alguns já no fim da vida, traíram a si mesmos, dando margem a anedotas, algumas até bem obscenas. Agora pergunto-lhes: o que pode esperar do homem, sendo ele, um ser dotado de características tão estranhas? Pois bem, cubram-no de todos os bens que há na Terra, mergulhemo-no de cabeça na felicidade mais completa, de modo que somente borbulhas subam à superfície; deem-lhe tal bem bem-estar econômico, de modo que não lhe reste nada mais a fazer, além de dormir, comer pães de mel e tratar de garantir a continuação da história universal - pois os senhores verão que, mesmo assim, ele, o homem, por pura ingratidão, por galhofa, há de fazer besteira."
Não somos uma tecla de piano
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Na verdade, para o personagem parece impossível que o ser humano se torne como uma tecla de piano, um ser inanimado, sem vontades próprias, sem a capacidade de errar e de fazer o mal.
"Os senhores estão convencidos de que, então, o homem deixará voluntariamente de errar, e a contragosto, por assim dizer, não irá querer opor sua vontade aos seus interesses normais. E mais: nesse tempo, dizem os senhores, a própria ciência vai ensinar ao homem (embora isso seja um luxo, na minha opinião) que ele, na verdade, não possui nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo não passa de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de órgão"
Além disso parece que existe uma tendência humana natural à busca pelo caos e pelo sofrimento, e talvez seja toda essa confusão que nos torne exatamente o que somos: humanos!
"ele inventará a destruição e o caos, inventará diversos sofrimentos e acabará por impor sua vontade! Ele lançará ao mundo sua maldição (isso é um privilégio seu, o que ele tem de mais importante e que o distingue dos outros animais), talvez ele consiga o que procura apenas com a maldição, ou seja, realmente talvez se convença de que é um homem, e não uma tecla de piano!"
Não somos perfeitos, tampouco somos como as máquinas. Somos seres duais, coexistimos com a bondade e a maldade dentro de nós e, muitas vezes, agimos simplesmente em benefício próprio, não respondendo a um pensamento coletivo.
"Eu creio nisso, respondo por isso, porque toda a questão humana, creio, resume-se, na realidade, em o homem provar constantemente para si mesmo que ele é um homem, e não uma tecla!"
Segunda parte: A propósito da neve úmida
E finalmente entramos um pouco mais na vida desse personagem apresentada na segunda parte do livro. Não sei se por se tratar de histórias, ou em função da própria escrita do autor, essa parte do livro é mais fluída e de leitura mais fácil.
O primeiro episódio narrado se refere a relação desse personagem com um soldado, pelo qual é meio obcecado, uma vez que luta desesperadamente consigo mesmo para conseguir se vingar da aparente superioridade e arrogância demonstrada por esse soldado.
O segundo episódio mostra o encontro desse personagem com seus antigos colegas de colégio. Ele os detesta, mas ainda sim tenta se enturmar e participar da despedida de um deles.
Ele odeia as mentiras, as bajulações, as conversas rasas e o ar de superioridade afetado deles. Por isso, e porque é alguém um pouco cruel, ele age de forma bastante desagradável com todos.
Já no último episódio, você encontra os desdobramentos do encontro desse personagem com a jovem prostituta Liza. Ele parece desenvolver alguma afeição por ela, mas não reconhece esse sentimento e não sabe demonstrá-lo. Ao contrário, ele a humilha de diversas formas e a afasta de si.
O mais interessante é que em todos esses episódios você se depara com um personagem contraditório, com muitas atitudes duvidosas, com um certo ar de superioridade e cheio de orgulho e rancor.
Você percebe que ele age muitas vezes com consciência da sua maldade com os outros. Ele é cruel e nocivo de propósito, e o pior: parece até gostar disso.
Como leitor, você intercala momentos de raiva com outros de compaixão, porque começa a se perguntar como alguém pode agir dessa maneira. Ele não consegue perceber como está se sabotando, prejudicando sua vida em função desse comportamento?
O subsolo é você
No fim você percebe que o subsolo, na verdade, não é um local físico, mas a mente do próprio personagem, que passou 40 anos convivendo consigo mesmo, com suas amarguras e seus pensamentos tristes ou destrutivos.
Leia esse livro
Apesar de não vivermos na Rússia do século XIX, me parece que teorias que tentam reforçar a bondade do ser humano continuam fortes nos nossos dias.
Esse livro só me fez enxergar como muitas vezes ajo exatamente como esse personagem descrito por Dostoiévski. Me faz lembrar que também tenho um lado ruim e que precisamos parar de tentar encaixar o ser humano em um lugar onde a gente não cabe: na perfeição.
Enfim, leia esse livro.
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